O governo Jair Bolsonaro prepara mudanças nas regras de utilização dos recursos que a Noruega e a Alemanha doaram ao Brasil para bancar projetos do Fundo Amazônia, iniciativa criada em 2008 para apoiar iniciativas de combate ao desmatamento na região amazônica. O Estado apurou que o governo trabalha na edição de um novo decreto para alterar as normas do fundo e permitir que seus recursos, que hoje chegam a R$ 3,4 bilhões, possam ser usados, por exemplo, para pagar indenizações a donos de propriedades privadas que vivam em áreas de unidades de conservação.
Na prática, o que se pretende é usar o dinheiro doado pelos europeus para financiar a compra de terrenos e propriedades localizadas nessas áreas protegidas, eliminando passivos de indenizações acumulados que não foram pagos desde a criação dessas unidades.
Uma segunda mudança pretendida pelo governo vai incluir a redução do número de membros do Comitê Orientador do Fundo Amazônia. Esse grupo, responsável por criar as diretrizes e critérios para aplicação dos recursos, é formado atualmente por 23 membros, entre representantes do governo federal, governos dos Estados da Amazônia e entidades da sociedade civil. O plano do governo é reduzir esse quadro para algo em torno de sete a dez membros, dando mais poder para a representação federal.
O plano de usar os recursos para bancar indenizações de propriedades foi confirmado ao Estado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Podemos usar parte do dinheiro do Fundo Amazônia para fazer regularização fundiária. Vamos diminuir o problema desses conflitos. Isso significa menos madeira ilegal sendo retirada, menos garimpo ilegal”, disse. “Os problemas estão aí. Tem de ter uma certa criatividade e ousadia para resolver.”
Segundo o governo, muitas unidades de conservação foram criadas em áreas onde já viviam famílias. As indenizações seriam pagas para que essas famílias, que passaram a viver em situação irregular, deixassem o local, mas os pagamentos acabaram não ocorrendo em muitos casos. No Parque Nacional da Lagoa do Peixe (RS), por exemplo, produtores rurais pescadores reclamam indenizações que chegariam a R$ 2 bilhões.
As regras atuais do Fundo Amazônia não preveem a utilização de seus recursos para bancar esse tipo de indenização. O estatuto da iniciativa carimba o dinheiro a projetos que, de alguma forma, atuem no combate ao desmatamento e, consequentemente, levem à redução dos efeitos das mudanças climáticas. Sobre pagamento para retirada de propriedades privadas, o regimento é claro: “Não será passível de apoio o pagamento de indenizações por desapropriação”. O assunto vai ser tratado por Salles na segunda-feira, em reunião com os embaixadores da Noruega e da Alemanha. O encontro foi confirmado pelo representante alemão, Georg Witschel.
O Brasil tem, a rigor, independência para escolher os programas que serão apoiados pelos recursos. Essas iniciativas, porém, são monitoradas pelos doadores, assim como as taxas de desmatamento do País. O compromisso é que o Brasil apresente um desmatamento anual inferior à taxa de 8.143 km² por ano na região, para ter acesso aos recursos. Se superar essa marca, fica impedido de utilizá-los. O fato de mudar as regras no meio do programa também pode criar atritos com os doadores. Trata-se de um fator preocupante, já que o programa vence no fim do ano que vem e há intenção de renová-lo.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que é o órgão brasileiro responsável por administrar a liberação dos recursos e escolher os projetos que podem ser financiados, silencia sobre o assunto. Depois de quatro dias de questionamentos pela reportagem, o banco público limitou-se a informar que não se manifestaria. A Embaixada da Noruega, país que doou R$ 3,2 bilhões para o fundo (94% do total arrecadado), seguiu o mesmo procedimento.
A Embaixada da Alemanha, país que doou R$ 200 milhões, declarou que ainda precisa esclarecer o assunto. “Não temos conhecimento desse plano.”
Histórico
Em 2016, o Ibama negociou com os doadores e chegou a usar, em caráter excepcional, R$ 56,3 milhões para financiar o aluguel de carros e helicópteros para fiscalizar regiões que eram alvo de forte desmatamento. O Brasil possui 334 unidades de conservação federais, administradas pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). Boa parte tem passivo fundiário. Atualmente, o ICMBio recebe uma fração (0,5%) das compensações ambientais que são pagas por empreendimentos de infraestrutura com grande impacto ao meio ambiente, como obras de usinas hidrelétricas. A avaliação de técnicos, porém, é de que faltam recursos.
Pelos menos três parques nacionais – Lagoa do Peixe (RS), Lençóis Maranhenses (MA) e Campos Gerais (PR) – já estão na mira do governo para terem suas áreas reduzidas. Isso para que propriedades privadas deixem de fazer parte do perímetro dessas unidades.
Gestão é foco de crise interna
A gestão do Fundo Amazônia virou foco de uma crise na semana passada, depois que o ministro Ricardo Salles declarou ter encontrado “fragilidades na governança e implementação” dos projetos do fundo em contratações feitas pelo BNDES. Paralelamente, o banco público, que administra os recursos, afastou a chefe do Departamento de Meio Ambiente, Daniela Baccas.
Inconformado com a decisão, Gabriel Visconti, chefe de Daniela e responsável pela gestão pública e socioambiental do BNDES, pediu para deixar o cargo imediatamente.
A AFBNDES, associação que representa os servidores do banco, cobrou a recondução da funcionária ao cargo e organizou um ato de desagravo. A Embaixada da Noruega também reagiu, por nota, declarando estar satisfeita e ver a gestão do fundo como “uma das melhores práticas globais de financiamento com fins de conservação e uso sustentável de florestas”.
Na tentativa de reduzir o atrito, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, foi a público para dizer que o fundo passa por um “processo de aprimoramento gerencial”. Ele também afirmou que “no BNDES, não há ingerência política”.