Como esperar um filé mignon e receber uma carne de segunda.
A metáfora foi usada por um fiel evangélico irritado com o anúncio de Jair Bolsonaro, neste domingo (31), de que o Brasil abrirá um escritório comercial, e não uma embaixada, em Jerusalém, terra tida como sagrada por cristãos, evangélicos e muçulmanos.
Como ele, outros evangélicos apelaram às redes sociais para expressar insatisfação com o que consideram uma “esmola” diante da promessa do presidente de que transferiria a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém.
O deputado e pastor Marco Feliciano (Pode-SP) fez uma provocação no mesmo dia: “Respeito a abertura do escritório, porém o segmento evangélico, um terço do eleitorado brasileiro, que deu uma vantagem de 11 milhões de votos ao presidente Jair Bolsonaro, garantindo sua eleição, confia que ele cumprirá sua palavra e em breve mudará a embaixada brasileira para Jerusalém”.
À reportagem Feliciano afirmou que o Brasil, “ao se negar a reconhecer a capital de uma nação com a qual mantém relações diplomáticas, está a intervir indevidamente nos assuntos de um país estrangeiro”.
Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), parlamentar ligado ao pastor Silas Malafaia, foi outro a se manifestar. “Lamento profundamente a decisão do presidente de abrir só um escritório de negócios do Brasil em Jerusalém”, disse.
“O compromisso com o povo evangélico e judeu é outro. Confio que o presidente tem uma só palavra! Aguardamos a transferência…”
Assim como lideranças e deputados evangélicos, fiéis adotaram um tom de cobrança na internet, em mensagens como “queremos mais, cumpra o que prometeu”, de Deinha de Jesus, e o desabafo de Kakito_RJ: “Sou seu eleitor, apoio seu governo, mas hoje estou frustrado, furioso, pois o sr. foi covarde, amarelou, cedeu à pressão árabe, cometeu um estelionato eleitoral. Nós o apoiamos com a promessa de o sr. mudar a embaixada para Jerusalém”.
Outros evangélicos, contudo, pedem calma, dizem que “o tempo é de Deus” e já, já Bolsonaro cumpre a palavra.
O próprio Malafaia buscou contemporizar, dizendo que o americano Donald Trump levou nove meses para fazer a mudança e que também assegurara a seu eleitorado que o embaixador de seu país iria para Jerusalém fazer isso acontecer.
“Em que lugar Bolsonaro falou que iria transferir a embaixada por ocasião de sua visita a Israel? Nenhum. O processo está apenas começando, vamos ver o final.”
“Bolsonaro disse para mim que a mudança seria paulatina”, afirmou o pastor à reportagem. “Ele já disse que o casamento está marcado. Os americanos, um monstro de potência, levaram nove meses. Por que um governo que não tem nem cem dias vai fazer? Falei que o presidente tem que ser macho [para tocar a transferência adiante] não no sentido de masculinidade, mas de coragem, audácia.”
Nem todos querem expressar publicamente a contrariedade com Bolsonaro, o que não quer dizer que ela não esteja lá.
Na semana passada, quando deputados evangélicos escolheram o novo líder de sua bancada, dois deles disseram à Folha que, sim, seria uma decepção se o presidente empurrasse com a barriga a prometida transferência.
Mas, ainda a dias da viagem a Israel, mostravam-se confiantes que ele usaria a viagem para fazer o anúncio.
Admitiram que o escritório em Jerusalém os deixou frustrados, mas não quiserem bater de frente com Bolsonaro publicamente, então pediram que seus nomes fossem omitidos.
A notícia ganhou destaque num dos maiores portais do segmento, o Gospel Prime, que frisou em sua manchete: “Bolsonaro transfere apenas ‘parte da embaixada’ para Jerusalém”.
Semanas atrás, o Gospel Prime e o concorrente Guia-me já haviam reproduzido uma fala em que o mandatário eleito com apoio esmagador dos evangélicos, ao contrário do tom adotado na temporada eleitoral, agora falava que a retirada do corpo diplomático de Tel Aviv “não é uma questão tão fundamental” na relação entre Brasil e Israel.
A declaração aconteceu em fevereiro, numa reunião com jornalistas no Palácio do Planalto.
Destino de forte turismo evangélico, Jerusalém virou o que virou para seguidores dessa fé por causa de uma profecia religiosa.
Evangélicos argumentam que Jesus -judeu, como seus apóstolos- teria vindo à Terra para redimir a nação eleita por Deus. Veem, portanto, seguidores da Torá como herdeiros de direito da cidade hoje repartida entre um lado ocidental e outro oriental (com mais palestinos).
E é nesta “nação escolhida” que, sob a perspectiva das Escrituras, o Armagedom acontecerá.
Narra o livro de Gênesis: “E apareceu o Senhor a Abraão, e disse: à tua descendência darei esta terra”. Terra que, segundo a Bíblia, exercerá papel crucial na epopeia da humanidade.
“As profecias de Apocalipse, Daniel e outros textos bíblicos apontam para a segunda vinda de Cristo após a reconstrução do Templo de Salomão em Jerusalém”, afirma o teólogo Marcelo Rebello.