É claro que podemos passar linhas e linhas dizendo que “Dumbo”, longa de Tim Burton que estreia nesta quinta (28), atualiza o personagem, apresenta o elefante orelhudo para um novo público, resgata a memória afetiva de sete ou oito gerações de crianças do mundo inteiro e passa uma mensagem edificante sobre bullying e aceitação. Tudo isso é verdade.
Mas talvez o mais interessante seja notar como a nova versão do paquiderme voador mostra uma mudança no próprio entendimento de infância ao longo dos anos.
O primeiro “Dumbo”, lançado pela Disney em 1941, tem todos os ingredientes para matar de tédio muitas crianças de hoje em dia. A narrativa é arrastada, há poucos diálogos, as músicas têm o ritmo e o compasso dos anos 1940 e o ponto de vista da narrativa é o dos animais. O elefantinho se vê às voltas com a mãe superprotetora, com outras elefantas que não o aceitam e com o ratinho Timóteo, que serve de guia e tutor do filhote quando sua mãe é presa após um surto de raiva.
Por outro lado, os humanos praticamente não têm rosto, estão sempre atrás de maquiagens de palhaço ou são vistos à contraluz, nas sombras.
Quase 80 anos depois, Tim Burton atualiza essa versão do Patinho Feio de algumas toneladas para os ares dos tempos atuais. Primeiro, o diretor de “O Estranho Mundo de Jack” (1993) e “Edward Mãos de Tesoura” (1990) corta todas as músicas fofinhas da narrativa. Depois, acaba com essa história de que Dumbo foi entregue por uma cegonha com roupa de carteiro -a mãe do elefante já aparece grávida no início do longa, sem mistérios ou cortinas de fumaça sobre de onde vêm os bebês.
Por último, muda o ponto de vista da narrativa: Dumbo não é mais visto sobre a ótica dos animais, mas do ponto de vista humano. No filme de Burton, duas crianças (Nico Parker e Finley Hobbins) que vivem no circo fazem o papel do rato Timóteo e servem de guias -e de instrutores de voo- para o filhote sem mãe. É como se o espectador de 12 anos finalmente tivesse lugar na aventura.
A cegonha e o trenzinho com rosto até aparecem em determinadas cenas, mas sem caírem em uma tentação infantiloide, que menospreza a inteligência do espectador. Muito disso graças à estética do diretor.
O novo “Dumbo” consegue dosar a esquisitice meio fora de lugar de Tim Burton com um certo grau de fofura da Disney. É um filme escuro, com poeira nos vidros, tintas descascadas, palhaços meio depressivos -mas incapaz de assustar, mesmo quando Dumbo é visto com uma maquiagem de palhaço que é de cortar o coração.
Essa certa atualização da narrativa, porém, gera coisas curiosas. Caso da cena em que o elefante e o rato Timóteo ficam bêbados sem querer na versão original.
A bebedeira na animação dos anos 1940 gera alucinações com bolhas alcoólicas que se tornam elefantes rosas dançando no infinito e tocando suas trombas como se fossem trompetes. A estética é psicodélica, quase lisérgica, em que o estúdio de Walt Disney gasta todo seu potencial mais artístico e menos confortável.
No novo filme, há até uma referência ao caso -mas sem álcool, é claro. Nela, o elefantinho vê as bolhas amalucadas durante um número do circo. Afinal, as crianças de hoje em dia sabem de onde vêm os bebês, mas não devem ser expostas a drogas ou a alterações de consciência. Novos tempos.
O mesmo pode ser visto na comparação dos dois finais. Na primeira animação, o elefante voador se torna uma estrela e a principal atração do circo com seus números voadores. Não vou contar o final de Tim Burton, mas vale lembrar que hoje não pega bem manter animais presos no picadeiro.
Avaliação: Muito bom
Classificação: 10 anos
Elenco: Colin Farrell, Michael Keaton, Danny DeVito
Produção: EUA, 2019
Direção: Tim Burton
Estreia: Nesta quinta (28)