Decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) recriou a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), que ele extinguira em 2019, mas excluiu a participação de entidades nacionais, internacionais e da sociedade civil.
Segundo o decreto, de 14 de dezembro, a Conaeti passa a ser uma comissão tripartite, com seis representantes do governo, seis de confederações empresariais e seis de centrais sindicais.
Os representantes do governo serão dos ministérios da Economia; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; da Educação; da Cidadania; da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O texto diz ainda que poderão ser convidados até seis especialistas representantes de outros órgãos, entidades ou organismos internacionais para participarem das reuniões, mas eles não terão direito a voto –na prática, atuarão como observadores.
Antes a comissão era polipartite, integrada por Ministério Público do Trabalho (MPT), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti) e Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Como membros plenos, com direito a voz e voto, as entidades tinham papel na elaboração, coordenação e avaliação de ações e no monitoramento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil.
“Houve um retrocesso social muito grande”, afirmou a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância).
“Sem desmerecer a importância das entidades sindicais, a especificidade da defesa e da promoção dos direitos da criança e do adolescente transcende os interesses que são inerentes às lutas classistas, travadas tradicionalmente entre os sindicais laborais e patronais.”
Desde que a comissão foi extinta, em abril de 2019, até agora, o plano nacional ficou paralisado, diz a procuradora. Nisso, segundo ela, o governo brasileiro descumpriu o artigo 227 da Constituição Federal, que dá prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, além das convenções 138 e 182 da OIT, que estabelece a idade mínima do trabalho e proíbe as piores formas de trabalho infantil, respectivamente.
Chamou a atenção ainda o fato de o decreto ter sido publicado às vésperas da virada para 2021 -designado pela ONU como Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, com vistas a erradicação de todas as formas de trabalho infantil em 2025.
“Essa demora [na recriação da comissão] distanciou o Brasil do alcance dessa meta e também sinalizou que a prevenção e a erradicação do trabalho infantil não são prioridade do Estado brasileiro.”
Segundo o IBGE, de 2016 a 2019, caiu de 2,125 milhões para 1,768 milhão o contingente de 5 a 17 anos no trabalho infantil, uma redução de 357 mil crianças e adolescentes. Ainda são 706 mil os submetidos às piores formas de trabalho.
“O cumprimento da meta [de 2025] torna-se ainda mais improvável devido ao agravamento da crise socioeconômica por causa da pandemia de Covid, pela desestruturação de políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil e da ausência de apoio às famílias em situação vulnerável e pela redução dos recursos financeiros para as ações de fiscalização do trabalho pelo governo federal”, disse Isa Oliveira, secretária executiva do Fnpeti em nota.
“Os efeitos sobre o atual contexto devem ser captados pelas pesquisas de 2020 e 2021.”
“É alarmante, preocupante”, afirmou Carlos Silva, vice-presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), categoria responsável pela fiscalização do trabalho infantil. “Esse cenário de adversidades tão agigantado pela pandemia vai exigir uma resposta de maior articulação do governo brasileiro.”
“É preciso que tenhamos um sistema de fiscalização forte e que existam sistemas e políticas públicas de prevenção, e isso só funciona quando é articulado com todos os representantes de todos os níveis da federação.”
“Essa nova formação da comissão é governista e corporativista, o que compromete o cumprimento das atribuições do órgão. É notório que o governo Bolsonaro não tem interesse na erradicação da exploração do trabalho infantil; o próprio presidente deu declarações em defesa”, afirmou o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e juventude.
Esta não é a primeira mudança em políticas voltadas à criança e ao adolescente do governo Bolsonaro.
Em setembro, o governo recriou a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, que ele tinha extinto em 2019, mas retirou suas principais atribuições.
A comissão deixou de ter papel de articulação de políticas públicas para tornar-se órgão de consulta e estudos. Outro retrocesso foi a omissão, em relatório do Disque Direitos Humanos, do encaminhamento dado e das respostas recebidas a denúncias de violações, apontada por reportagem da Follha de S.Paulo.
Em nota, o Ministério da Economia afirmou que o enfrentamento adequado ao trabalho infantil “só pode ser alcançado através da ação integrada de diversos órgãos de governo dos mais diferentes níveis (federal, estadual e municipal) e setores (trabalho, educação, assistência social, saúde, entre outros); do sistema de garantia de direitos; de entidades da sociedade civil; do Ministério Público; com apoio, inclusive, de organismos internacionais”.
Mas não explicou por que esses órgãos passaram a ter caráter consultivo, afirmando, por outro lado, que o “tripartismo é a principal forma de diálogo social, princípio fundador da OIT”. Disse ainda que pediu para as entidades que indiquem especialistas.
*Folhapress